Como “ler” esta história…

O ser humano, tal como todas as espécies animais e, virtualmente, todas as formas de vida, possuem uma organização temporal estável na sua fisiologia. Esta organização é imprescindível para a sincronização de funções orgânicas interdependentes e de outras, que direta ou diretamente interagem, sendo determinada por um “sistema temporal circadiano”, ou seja, um conjunto de componentes que condicionam um período que ronda cerca de um dia (do latim: circa diem), ou seja, aproximadamente 24h, durante o qual se sucedem vários mecanismos, que oscilam com ritmos sensivelmente próximos deste período e que tendem a manter o equilíbrio – a homeostase. São exemplos, a oscilação da temperatura corporal, a secreção de certas hormonas e o ciclo sono-vigília. 

Este sistema funciona tendo por base a existência de um relógio principal, localizado no cérebro, numa região conhecida por hipotálamo. Este relógio, não é mais do que um conjunto de células com um funcionamento auto-mantido, também ele gerido por mecanismos moleculares com ritmo circadiano.

De facto, o relógio biológico humano, por norma, tem um período ligeiramente maior que as 24h do dia social (mais ou menos 24,6h, em média), razão pela qual, se não fosse acertado diariamente, todos os dias, o sono, por exemplo, chegaria um pouco mais tarde, e o despertar seria, a manterem-se todas as outras condições, cada dia um pouco mais tardio. Isto não sucede porque diariamente “os relógios” são acertados. Diferentes mecanismos influenciam este acerto, mas é a luz, o principal dador de tempo ao nosso organismo. A luz solar atua sobre células especificas existentes na retina do olho, estimulando a produção de substâncias que informam o “relógio mestre” do momento do dia em que nos encontramos de acordo com a intensidade solar. Com algumas exceções, este mecanismo é muito sensível, inclusivamente em cegos, já que, embora também com o contributo das células que constituem a via clássica da visão (cones e bastonetes), a regulação fótica do relógio circadiano depende fundamentalmente das células ganglionares da retina, um complexo independente e que se mantém, a menos que o olho esteja ausente. Assim, quer no que respeita ao sono quer no que respeita a outras funções cerebrais associadas por exemplo, a funções cognitivas como a memória e aprendizagem, mas também o funcionamento da digestão e do metabolismo energético ou da motricidade, entre outros, dependem de uma certa altura do dia para ocorrer com maior probabilidade de sucesso. É uma vantagem evolutiva que foi desenvolvida ao longo do processo de desenvolvimento humano.

Mas se o funcionamento é desta forma em animais diurnos (de que é exemplo o Homem), a ação deste mecanismo é inversa, no que respeita ao sono e a outros ritmos, nos animais noturnos e por isso, também com hora relativamente marcada mas sincronizada com o período noturno das 24h, morcegos, ratos e, algumas espécies de lobos tendem a estar mais ativos durante a noite, sendo durante o dia que mantêm padrões de menor atividade e de maior quantidade de sono. 

Se trocamos as voltas ao relógio, o que pode suceder quando fazemos viagens transcontinentais mas que pode acontecer também, no quotidiano, quando nos expomos a iluminação excessiva numa hora inapropriada comparativamente à que seria de esperar naturalmente, o relógio pode avariar-se com maior ou menor impacto nas funções que regula, dependendo da robustez de cada relógio (nem todos são “Rolex”) mas também, no que respeita ao sono, de características cromotípicas do animal em causa (a predominância matutina, como sucede com as cotovias, ou a predominância vespertina, como sucede com os mochos e com o lobo da história). O cronotipo está relacionado portanto com o padrão temporal que o sono adquire com maior tendência em determinado organismo, e sabe-se que existem distintas fragilidades na dependência desse cronotipo (por exemplo, é mais difícil a uma cotovia, ou a uma pessoa matutina, adaptar-se a alterações bruscas de horário, tendo mais problemas e sofrendo mais com essas mudanças).

O que terá sucedido ao “nosso” lobo foi exatamente isso: avariou o relógio.
Sendo um animal noturno, e tendo os seus mecanismos genéticos, moleculares e fisiológicos preparados para esse padrão de funcionamento, ao ter contacto excessivo com a luminosidade intensa, típica das grandes cidades, durante a noite, o seu relógio biológico principal ficou desregulado, o que por sua vez altera também as funções reguladas por esse relógio, de que é exemplo a função digestiva e metabólica. Neste contexto, o lobo não só alterou o seu padrão de sono, a alteração comportamental mais frequentemente notada nestas circunstâncias, mas também alterou a sua capacidade para estar alerta e atento durante a noite, para caçar agilmente e para que toda a sua energia se mantivesse na hora própria do dia que lhe é mais favorável. Assim, emagreceu, ficou mais frágil, mais irritado e queixoso. Com estas alterações individuais, o lobo influenciou também a comunidade onde vive, como qualquer um de nós influenciará no trabalho, na escola e na vida. Felizmente, se o desconcerto não for demasiado prolongado ou intenso, pode reverter-se com a implementação de algumas regras fundamentais, como a implementação de rotinas ajustadas, sempre que possível, ao perfil biológico. 

A manutenção do ritmo atividade-repouso, e do sono-vigília dentro dos limites fisiológicos é uma parte fundamental do processo, sendo importante, para isso, desviarmo-nos de fatores perturbadores (a existência dos pirilampos por cima da toca do lobo, já desviado do horário normal, pode ser análoga, no humano, ao uso excessivo de dispositivos eletrónicos como computadores ou telemóveis, nas horas próximas ao inicio do sono, favorecendo muitas vezes a manutenção de uma insónia crónica). Estes fatores podem desencadear problemas agudos no horário de dormir, inclusivamente em idade pediátrica, com influência sobre as funções diurnas e sobre os estágios normais de crescimento e desenvolvimento, que dependem de um sono adequado e a horas certas.

A recuperação dos seus ritmos “normais”, com um acerto do seu relógio principal e consequentemente dos relógios periféricos que com ele se sincronizam, conduzem o lobo a uma sensação de conforto e felicidade que traduz aquela que todos nós podemos sentir quando o tempo que corre dentro de nós o faz, com a melhor das intenções da natureza.
O lobo... como todos nós, ficou agradecido!
Bons ritmos... e bons sonos.

Miguel Meira e Cruz
Especialista Europeu em Medicina do Sono
Presidente da Associação Portuguesa de Cronobiologia e Medicina do Sono
Coordenador da Unidade de Sono do Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa, Lisbon School of Medicine

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